Em entrevista, o geógrafo David Harvey, professor emérito de Antropologia e Geografia da City University of New York (CUNY), analisa a urbanização do mundo e defende que é preciso combater o capitalismo por meio da radicalização nas cidades.
por Daniel Santini
Daviid Harvey não gosta de São Paulo. “Estive na cidade nos anos 1970, e também em lugares como Recife e Salvador. Eles foram totalmente tomados por arranha-céus e shoppings centers. Todos no Brasil gostam de pensar que o país é especial – mas o que o Brasil tem de especial? É só capitalismo.” É assim, de maneira direta e clara, sem medir palavras, que ele respondeu a perguntas de um grupo reunido na capital paulista para uma entrevista coletiva organizada pela Fundação Rosa Luxemburgo. Além do badalado marxista britânico, o encontro reuniu os acadêmicos brasileiros Camila Moreno, Isabel Loureiro, Jorge Grespan, Marcos de Oliveira, Mariana Fix e Pedro Arantes. Da Fundação Rosa Luxemburgo, participaram Ana Rüsche, Daniel Santini, Elis Soldatelli, Florencia Puente, Gerhard Dilger e Verena Glass.
Harvey, que hoje vive nos Estados Unidos, onde dá aula como professor emérito de Antropologia e Geografia na City University of New York (CUNY), é considerado uma das principais referências em marxismo, em especial quando o assunto é urbanismo. Nesta entrevista coletiva ele aborda da construção das megalópoles chinesas à estandardização das cidades capitalistas. De maneira contundente, bem-humorada e até ácida às vezes, com a mesma intensidade com que rejeita a hiperurbanização, ele critica ideias como a desurbanização e o conceito andino de bem viver, reclama dos limites da agroecologia e defende que a produção de grãos deve ser industrializada e em grande escala.
A urbanização na China é um projeto maciço, com alta densidade populacional em conjuntos habitacionais de cinquenta andares, tudo conectado por trens rápidos. São centros construídos com matérias-primas importadas em larga escala, como ferro que sai da Amazônia,1 que não serão alimentados por painéis solares ou usinas de vento, e sim por energia nuclear. Dentro de uma perspectiva ecológica, quanto tempo esse modelo pode durar?
David Harvey – Não tenho a menor ideia. O que temos neste momento são algumas dessas formas absurdas de urbanização, como em Dubai. Existem coisas muito doidas acontecendo. Mas aí é preciso olhar para a macroeconomia. A única coisa que manteve o capitalismo vivo no mundo nos últimos anos é a urbanização chinesa. Se esse projeto maciço não tivesse acontecido e se ele não tivesse sido acelerado como foi depois de 2007/2008, grande parte da América Latina teria entrado em crise naquele período. A China está imensamente endividada, não em dólares, mas consigo mesma. Os chineses morrem de medo do desemprego, e este foi também um projeto de absorção de força de trabalho. A dinâmica de crescimento do capitalismo junto à ideia de que é possível crescer assim eternamente são uma contradição que vai chegar ao fim. E haverá consequências ambientais. Vi estatísticas que indicam que a China consumiu mais cimento nos últimos cinco anos do que os Estados Unidos no último século. E cobrir um país com cimento não parece uma ideia muito ecológica… Mas é pertinente a questão sobre como tais cidades serão abastecidas em termos de energia; é um ponto crítico. Cidades são extremamente vulneráveis em relação a fontes de energia.
O capitalismo depende cada vez mais da urbanização?
Sim, e esse é um ponto importante, porque as atividades mais lucrativas e produtivas estão cada vez mais ligadas à urbanização. Parte desse sistema é pura ficção, porque é baseado no aumento de aluguéis, uma variante que é cada vez mais uma fonte de renda importante para a classe capitalista como um todo. Não dá para continuar por esse caminho. Acompanhei o desenvolvimento urbano no Brasil nos últimos trinta, quarenta anos. Estive em São Paulo nos anos 1970, e também em lugares como Recife e Salvador. Eles foram totalmente tomados por arranha-céus e shoppings centers.
Todos no Brasil gostam de pensar que o país é especial – mas o que o Brasil tem de especial? É só capitalismo. E, generalizando, é sempre o mesmo. É isso de carros, avenidas, shoppings e condomínios. Se considerarmos que todas essas mudanças aconteceram nos últimos trinta, quarenta anos, e pensarmos no que vai acontecer nos próximos trinta, quarenta anos, dá para pensar no mundo em que vamos viver. É inimaginável. O que estamos vendo na China hoje é o futuro.
Neste contexto, o que pensa do conceito de desurbanização? Nós temos como algo naturalizado a transição do rural para o urbano, mas talvez, em algum ponto, tenhamos de discutir como desurbanizar de maneira planejada e democrática, não?
Bem, eu sou contra a desurbanização. Acredito que seria igualmente desastroso em termos ecológicos espalhar todos pelo campo. Especialmente considerando as divisões de trabalho e os fluxos de commodities, acredito que formas eficientes de urbanização são cruciais. Estamos falando de uma população que em breve será de 8 bilhões. Como espalhar toda essa gente em espaços pequenos e autônomos? E em que nível eles poderiam ser autônomos? Porque uma das coisas que o capital fez foi, ao definir conexões e divisões de trabalho, estabelecer uma rede em que comunidades locais não são mais tão vulneráveis a catástrofes. Bastava uma praga de gafanhotos para deixar uma comunidade morrer de fome. Antes das ferrovias, isso era bastante comum. Estas eliminaram de maneira eficiente a fome local. Se pensarmos em um mundo de comunidades autônomas autossustentáveis, cada uma delas vai ser vulnerável de alguma forma. Então, um mundo descentralizado não parece para mim o mais razoável a seguir. Isso posto, também não sou a favor de uma hiperurbanização como a chinesa. A questão urbana é crucial, mas é por meio de formas mais radicais de urbanização que acredito que vamos resolver nossos problemas. Incluindo, é claro, muita ênfase em sistemas de agricultura urbana e similares. Hortas comunitárias e ideias do gênero podem funcionar bem.
Pequenas comunidades não seriam menos frágeis do que uma cidade como São Paulo, que depende de um só centro de abastecimento, o Ceasa? Ficou tão naturalizada nos círculos de esquerda a ideia de urbanização que mesmo em discussões sobre bem viver, um conceito indígena andino, falar em sair da cidade não é uma opção considerada…
O bem viver tem origens bastante rurais e não dá para todos viverem como populações indígenas da Amazônia.
Essa é a origem, a tradição, mas há muitos pensadores que formulam o conceito de maneira mais aberta. Muitas vezes, as pessoas resumem tudo como pachamamistas que querem voltar atrás; é uma crítica frequente, da esquerda e da direita.
Não concordo com essa crítica, mas tenho meu ponto de vista, sobre o qual escrevi em Spaces of hope.2 Entre outras coisas, entendo que certas partes do mundo poderiam ser deixadas para produção altamente industrializada de grãos e carne. Parece bastante ineficiente cultivar trigo no próprio quintal. O que dá para plantar são verduras, folhas, tomates. Às vezes uma lesma pode fazer um estrago. Na Argentina, onde vivi por um ano, eu tinha um belo cultivo, mas acordei um dia e tudo tinha sumido. Encontrei uma trilha de formigas e fiquei muito antiecológico. Procurei o veneno mais poderoso e destruí o formigueiro. Desisti dessa coisa orgânica sem sentido [risos]…
É claro que se olharmos alguns aspectos da produção industrial, como a de carne, é nojento. Existem muitas evidências de que a maneira como a produção de frango é estruturada hoje favorece doenças. Estamos criando novos ambientes para novos patógenos. Então, a questão é: qual tipo de agricultura deve permanecer industrializado? Acredito que a maioria da produção de grãos deve se manter industrializada, porque é a maneira mais eficiente e efetiva. Não estou dizendo que agricultura urbana vai resolver, mas pode ajudar. Essa ideia está relacionada com a noção de bem viver.
Pensa que o conceito pode ser útil na busca por soluções?
Acredito que com frequência nos encontramos trabalhando com o que eu chamo de termos vazios de significado – o bem viver, por exemplo. Todo mundo quer uma boa vida. Os bilionários querem uma boa vida, os indígenas querem uma boa vida. A grande questão não é nem o bem viver em si, e sim como as pessoas preenchem esse conceito com um significado particular. E eu acredito que o que os indígenas querem dizer com esse termo não funciona bem quando traduzido como bem viver. Ninguém vai dizer que é contra o bem viver. É um desses conceitos em relação aos quais todos vão ser a favor.
Sustentabilidade é outro exemplo. Ou direito à cidade. Todo mundo quer ter direito à cidade. A questão é: direitos de quem? Pelo que as pessoas se esforçam, qual é o sentido da luta? Devemos parar de falar no bem viver e começar a falar sobre pautas específicas – habitação, por exemplo. Quanto antes começarmos a falar sobre programas reais e objetivos, melhor.
Sobre habitação, no Brasil vemos casas construídas pelo programa Minha Casa, Minha Vida que parecem caixinhas enfileiradas, todas iguais. É possível fazer algo diferente quando se pensa em programas em larga escala?
No geral, existe essa percepção das pessoas de que projetos habitacionais são necessariamente feios e ruins. Mas, se olharmos os construídos em Londres em 1960, há alguns muito bonitos, que têm uma qualidade fantástica. Tanto que, depois que eles foram privatizados, boa parte da burguesia se apropriou deles. Então, não há nenhum motivo para que projetos sociais de habitação sejam parecidos com o que você descreveu.
Mas é possível construir projetos assim considerando os custos e os aspectos econômicos?
Primeiro, a questão de custo vai depender do valor dos terrenos, e acredito que esse é um ponto em que o Estado tem um papel importante em coibir a especulação como parte de uma política de garantir acesso à moradia. Depois, é preciso redirecionar recursos públicos. Por exemplo, se você taxar cada propriedade da burguesia e cobrar impostos de habitação da classe média e da classe alta, redirecionando o que for obtido para habitação social, vai haver muito mais recursos para projetos habitacionais para as massas. O problema é que muitas vezes o sistema funciona ao contrário. Em Nova York, arranha-céus dificilmente pagam impostos por conta de subsídios que receberam nos anos 1970. Bilionários vivem em condomínios livres de impostos. Bill de Blasio [prefeito de Nova York, do Partido Democrata] está tentando mudar isso.
De Blasio é um progressista que assumiu a prefeitura de Nova York depois de [Michael] Bloomberg e outros de direita. Quais possibilidades ele tem?
Muito poucas, porque as questões fiscais ficam majoritariamente com o governo do estado. Andrew Cuomo, o governador, é do Partido Democrata, mas pretende chegar à presidência e, por isso, não vai incomodar Wall Street. Assim, acaba se opondo a tudo que De Blasio propõe, e este fica com pouco espaço de manobra. Logo depois da eleição, De Blasio passou a sofrer ataques da imprensa, e sua popularidade despencou. Os movimentos sociais não estão mais nas ruas ameaçando Wall Street ou algo assim, então ele não tem apoio.
E as pessoas que foram para as ruas em 2011, como o Occupy Wall Street?
Elas se perderam em muitos aspectos, acredito. Os movimentos sociais que estavam diretamente ligados e ao redor do Occupy eram muito fragmentados e diferentes. Quando o Zuccotti Park foi fechado, tudo ficou descentralizado e com menos visibilidade. A única aparição foi quando veio o furacão Sandy, e o Movimento Occupy foi o primeiro a organizar ajuda de maneira supereficiente, com sua autonomia de sair e auxiliar diretamente as pessoas. Mas a política disso é terrível, em um sentido de que eles ajudaram as pessoas a voltar e reconstruir suas casas dentro de regras de propriedade privada e todo o resto. De repente, perceberam que estavam reconstruindo a forma de vida individualista e capitalista – que haviam se tornado um grupo supereficiente de suporte às vítimas, mais do que uma força política transformadora.
E movimentos como os Indignados na Espanha, as forças que surgem em Barcelona, na Grécia, na Turquia, no sul da Europa? Estamos vivendo um momento de esperança em que dá para imaginar mudanças?
Sim, eu acredito que é um momento interessante em muitos sentidos. O Occupy é um movimento que acabou influenciado por sentimentos anarquistas e autonomistas, e isso resultou na falta de interesse em poder político stricto sensu. Era como se o movimento considerasse que o aparelho estatal não teria relevância. Havia essa insistência de que tudo fosse horizontal e não hierárquico. Estive em discussões com eles por algum tempo e escrevi um artigo em que, de maneira amistosa, ataquei os anarquistas. Brinquei com o Escuta, marxista!,3 do [anarquista norte-americano] Murray Bookchin, e publiquei o Escuta, anarquista!,4 tentando apontar que muitas coisas boas vieram do anarquismo, mas também falhas cruciais.
E temos de estar preparados para ir além do que os anarquistas fazem e fazer parte dos governos. Isso é o que parece estar ocorrendo, e aí as eleições na Espanha são muito importantes. Vemos um nível de ativismo que obviamente é crítico ao Estado, mas não ignora o poder do Estado.
Então, a questão dos movimentos alternativos e seu papel político é a agenda hoje. Vemos isso sendo expresso na maneira como as coisas aconteceram em Barcelona ou Madri. É um momento emocionante e de esperança. Mesmo que ainda haja uma ideia forte em muitas organizações de esquerda de não querer nenhuma relação com o aparelho estatal. E há todos esses estudantes que me classificam como stalinista porque defendo que não deveríamos descartar negociar com o Estado.
Daniel Santini é jornalista, pesquisa armas e relações internacionais, e escreve sobre mobilidade urbana no site: http://outrasvias.com.br
Fonte: Le Monde Diplomatique