Paraná é o segundo em ranking de violência doméstica contra mulheres no País. Segundo IBGE, 4,9% das entrevistadas sofreram agressão por parte de conhecidos nos 12 meses anteriores à pesquisa

Theo Marques
Marlene de Oliveira, de 60 anos, começou a pintar para se libertar das marcas de um relacionamento abusivo. “Transformei toda aquela violência e pobreza em arte. Eu acreditei em mim”
Há dez dias, Vilson dos Santos, de 30 anos, atirou contra sua companheira, Elisangela Aparecida Schuvetz, de 28, e em seguida contra si próprio, na frente dos dois filhos pequenos, em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC). No final de julho, Roneys Fon Firmino Gomes, de 40, foi preso por ter assassinado Mara Josiane dos Santos, de 36, em Maringá, no norte do Estado. Pouco tempo depois, ele confessou à polícia que cometeu outros cinco feminicídios, isto é, homicídios com motivação de gênero, porque “tinha ódio de prostitutas”. Apesar da notoriedade que ganharam, esses são apenas alguns dos milhões de casos em que pessoas tiveram suas vidas ameaçadas ou abreviadas pelo simples fato de serem mulheres.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em junho e baseada em dados de 2013, a proporção de indivíduos de 18 anos ou mais que sofreram algum tipo de violência por parte de conhecidos nos 12 meses anteriores à data da entrevista foi de 3,5% no Paraná, o que está acima da média nacional, de 2,5%. Se considerarmos apenas o sexo feminino, principal alvo desse tipo de agressão, o índice estadual sobe para 4,9%. O Estado fica atrás somente do Rio Grande do Norte (6,2%) no ranking. Para especialistas ouvidos pela FOLHA, os números reforçam aquilo que outros órgãos, oficiais ou não, vêm evidenciando ao longo dos anos: o machismo, quando não a misoginia (aversão a mulheres), está entranhado na sociedade brasileira.

“Não tenho dúvidas de que estamos numa situação muito crítica de violência. E isso envolve cultura, falta de educação, a crença na impunidade e a impunidade efetivamente. O nosso sistema de Justiça não dá conta da apuração, da investigação e da punição”, afirma a advogada Sandra Lia Leda Bazzo Barwinski, presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB Paraná (Cevige). De acordo com ela, ainda se discute e faz pouco no Estado para combater o problema. “A gente não tem nenhum programa institucionalizado de atendimento ao agressor (que vise à recuperação), por exemplo. Desde 2012, quando houve a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, que investigou a violência contra a mulher), praticamente não houve avanço na segurança pública e no Judiciário”, completou.

A unidade da federação já tinha sido apontada como a terceira em número de feminicídios, conforme o Mapa da Violência, publicado pelo Instituto Sangari em 2012. Foram 388 assassinatos em 2010, o que significa uma taxa de 6,3 para cada 100 mil mulheres. O índice supera a média do País, de 4,4 crimes por 100 mil habitantes. Para completar, na última terça-feira um levantamento do DataSenado constatou aumento nos registros de violência psicológica contra mulheres no Brasil, além da diminuição na sensação de proteção por parte delas. Embora 100% das entrevistadas conheçam a Lei Maria da Penha (LMP), promulgada há nove anos, 43% se dizem desrespeitadas, índice maior do que o divulgado em 2013, de 35%. Foram ouvidas 1.102 pessoas, entre 24 de junho e 7 de julho.

Um basta à opressão

A aposentada Marlene de Oliveira, de 60, por pouco não teve sua vida interrompida pela violência doméstica. Natural de Rolândia, na Região Metropolitana de Londrina (RML), mas radicada em Curitiba, ela buscou nas artes plásticas e na literatura a força para se libertar das marcas de um relacionamento abusivo. “Naquela época, se você não era mais virgem, representava uma vergonha para a família e a sociedade. Ninguém me aceitaria de volta”, conta, ao justificar o fato de ter casado com um homem que já mostrava sinais de agressividade. “Foram 12 anos de casamento; 12 anos que pareciam sem fim. Apanhava muito mesmo. Ele dizia que, se eu não me calasse, seria pior. E mortas não falam”, completa.

A gota d’água, diz, foi quando o então esposo vendeu a casa da família, sem prévio aviso, e foi morar com outra pessoa, abandonando Marlene e as três filhas do casal. Para se sustentar, a paranaense trabalhou como catadora de materiais recicláveis e como auxiliar de serviços gerais em um hospital, até que uma fibrose pulmonar a fez parar na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Eu era um touro; não tinha canseira, nem nada. Mas, quando saí do coma, não conseguia nem pentear o cabelo. Foi devido aos maus-tratos. Tudo aquilo que eu aguentava calada o pulmão foi absorvendo”, relata.

O mesmo médico que a atendia, o pneumologista Carlos Eduardo do Valle Ribeiro, foi quem a incentivou a começar a pintar, primeiro panos de prato e depois óleo sobre tela, como forma de canalizar a dor. Entrar na residência da aposentada, no bairro Cajuru, na capital paranaense, é se deparar com essa história de sofrimento e superação, contada por meio dos mais de 50 quadros expostos em uma das salas. Além de artista plástica premiada, Marlene escreveu a autobiografia ‘Valle dos Sonhos – Um passado Real’, prepara o lançamento de seu segundo livro – “só com coisas boas” – e arranja tempo para se dedicar à dança cigana, sua paixão.

As apresentações, feitas “sob encomenda” e de forma voluntária, são voltadas a mulheres que, como ela, libertaram-se da opressão. “Eu levo a fala e a dança. Começo acorrentada; depois vou me soltando. Algumas mulheres conseguem sair desse silêncio só em me ver. É um trabalho que faço com o maior prazer”, explica. “Creio que não existe o impossível. Basta estar vivo e se sentir vivo, que tudo vai se tornando fácil. Hoje posso dizer que me considero uma pessoa feliz. Transformei toda aquela violência e pobreza em arte. Eu acreditei em mim.”

Serviço

Casos de agressão e de outras violações de direitos femininos podem ser denunciados diretamente nas delegacias ou por meio do Ligue 180. O serviço, mantido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), da Presidência da República, é gratuito, funciona 24 horas por dia e preserva o anonimato. Ainda que não façam o primeiro atendimento, órgãos como o Ministério Público, a OAB e as Varas de Violência Doméstica e Familiar também podem ser acionados. A Lei do Feminicídio, sancionada em março de 2015, como complemento à Maria da Penha, prevê pena de reclusão de 12 a 30 anos para quem cometer assassinatos em razão de gênero.
Fonte: Folha de Londrina